Sunday, February 14, 2010

Dois Poemas de GUTEMBERG DE MOURA.


Conheci o poeta Gutemberg (Honorato) de Moura no início da década de 80, quando ambos participávamos de eventos de poesia marginal que fazíamos, juntamente com outros poetas, nas principais cidades de Mato Grosso no Sul. Na época ele divulgava o seu primeiro livro "Aurora do Ente" e a primeira coisa que me impressionou nele foi o tamanho do bardo, quase 2 m de altura! Pareceu-me bonachão e desajeitado ali sentado, sorrindo para a gente. Mas quando se levantou para falar um poema, o seu rosto se obscuresceu e, embalado pela voz enérgica e pelas palavras duras, ele impediu que o burburinho do bar sequer piasse enquanto falava.

A poesia do moço impactava! Recordo-me que as pessoas tentavam compará-lo ao poeta Augusto dos Anjos, talvez pelo vocabulário arrojado que usava, que parecia preferir as palavras mais ásperas e incômodas e os temas mais evitados.

Veja por exemplo como ele descrevia um menor de rua no poema "Rejeição Virótica":

"Numa risadinha senvergonha,/ ele demonstra que em sua carência/ já não reside o indefeso infante/ trêmulo ante a violência do seu meio."// "Um ar bestial hoje mora em sua face./ O cérebro lesado, com que possui ligação direta,/ já não teme o chicote da vida/ que lhe encurtou o alcance."


A MEDIOCRIDADE NÃO TEM CURA?



Arguto e com uma sensibilidade extremada, Gutemberg tinha um bom-humor à toda prova e logo nos tornamos grandes amigos. Tivemos longos e produtivos papos onde eu sempre parecia querê-lo arrebanhar para o lado literário da coisa, ele por sua vez parecia queria me embasar de conceitos de espiritualidade. Tivemos também altos embates, por exemplo, sobre um verso de um poema seu "Febre" onde ele afirmava que "mediocridade não tem cura!", onde eu, às poucas armas, tentava humildemente salvar o nosso direito de ser medíocre conscientemente ou não de vez em quando.

O certo é que anos depois fizemos vários humildes trabalhos de poesia juntos: tratava-se de livretos duplos, compostos em máquina de escrever e confeccionados com xerox. Pronto, um livro começava com a capa de um dos autores e tinha seus poemas até a metade das páginas, então a leitura ficava de cabeça-para-baixo, era o livro do outro. Fizemos 3 ou 4 trabalhos assim e o objetivo principal era que as pessoas pudessem conhecer nossos poemas, mas havia o importantíssimo "arrecadar fundos para a cerveja", só começavamos a beber depois de conseguir vender o primeiro livro.

Mas tínhamos outros objetivos também com esta divulgação de poesia, por exemplo, para mim era importante ter um feedback dos leitores, para saber se os poemas que estávamos escrevendo tinha eco, filicidiei alguns poemas ali. Para Gutemberg, parecia mais que ele esperava sempre que alguém se enfurecesse com os textos lidos, o que de fato algumas vezes aconteceu. Houve cenas de pessoas rasgando os panfletos poéticos em pedacinhos, outros derramaram cerveja entre as páginas sem pagar, mas houve um camarada que chegou a incendiar um de nossos panfletos após tê-lo adquirido, numa demostração espantosa de poder antipoético!

Gutemberg pruduziu trabalhos de poesia independentes como "Aurora do Ente", "Zumbi", "Vodu", "Sangue e Luz", "Pesadelo...". Seus escritos são poderosos pela força anarquista que têm, mas seus leitores precisam ter estômago preso, alguns de seus poemas talvez façam a poesia gótica parecer ingênua. Escolhi aqui 2 textos líricos, entre os mais lights bardo, para apresentar-lhes. Uma boa leitura.




PROMESSA


Enforcarei as cordas da miséria
espremendo boas novas de sangue
na gravidez das ruas tristes.

Libertarei o pensamento dominador,
escarrando na pele da ignorância
a saliva derramada que derrete o medo.

No inferno irei cavalgar
esfregando a minha carne viva
no dorso esfolado do tempo.

Auxiliarei nos campos inferiores,
desenhando fios de luz
no chão maldito que me foi confiado.

Gotas de horror escapando da fronte,
arrancarei dos meus miolos
os dedos viscosos da hipocrisia.

Sofrendo muito de erro em erro,
tomarei então um novo espinho
para cravar na testa da mentira.


Gutemberg (Honorato) de Moura - In: "Vodu"




DEUS LOUCO


As estrelas fazem poeira no ar.
O céu permanece em mim,
afogado e rindo.

O vento resiste, não quer entrar
Não respiro, mas sou uma lâmina.

Quebro harmonia e abuso.
Sou um deus louco,
a veia escura do rei.

Todo vampiro é acessível.
A paixão é nossa,
somos livres doadores.

- Quebra meu espelho,
raio da manhã!

- Rio que passa,
casa comigo!

- Moça dos seios caídos,
toma conta de mim!


Gutemberg (Honorato) de Moura - In: "Vodu"



Ilustações: Fotos de trabalhos da artísta plástica IASMIM MATTOS.